First published by Sentience Research
Date: em inglês (2019), em espanhol (2021), em português (2023).

O Imperativo de Abolir o Sofrimento


Sentience-Research: Como você definiria "transumanismo"?

David Pearce: Transumanismo é a evolução coordenada em direção a humanos aprimorados. Os transumanistas aspiram, por assim dizer, a uma civilização de "três S", ou seja: de superinteligência, superlongevidade e superfelicidade.
Esses três "supers" precisam ser explicados.

Superfelicidade soa o suficientemente claro. A vida darwiniana é assolada pelo sofrimento. Miséria e descontentamento, infelizmente, têm sido condições adaptativas. Contudo, o domínio iminente de nosso código genético significa que toda a biosfera em breve será programável. Assim, o nível de sofrimento - e felicidade - no mundo vivo será um parâmetro ajustável. O conjunto de circuitos de recompensa em animais humanos e não- humanos pode ser geneticamente aprimorado. Portanto, uma nova arquitetura motivacional é viável, ou seja, vida baseada inteiramente em gradientes sensíveis à informação de bem- estar. Atualmente temos informação sobre desvios genéticos que exibem indícios de tal psicologia bem-aventurada. Esses "hipertímicos" são excepcionais. Já o humor baixo é mais comum. Dessa forma, o mal-estar corporal é mais difundido do que o bem-estar físico vibrante. No futuro, por outro lado, humanos e depois transumanos recalibrarão a esteira hedônica, aumentarão os limiares de dor e os pontos de ajuste hedônicos, e assim criarão uma civilização baseada inteiramente em gradientes de felicidade - eventualmente, felicidade super-humana além dos limites da experiência humana normal.

A Superlongevidade implica superar a biologia do envelhecimento. Robôs inorgânicos podem ser reparados e atualizados indefinidamente. Da mesma maneira, nenhuma lei fundamental da natureza impede que máquinas biológicas conscientes - e híbridos ciborgues do porvir - também desfrutem de uma vida útil e saudável indefinida. Claro, os detalhes moleculares e biológicos ainda são incertos. Realisticamente, os mais velhos de hoje não farão a transição para uma juventude eterna - embora Aubrey de Grey (Ending Aging, 2007) seja mais otimista quanto aos prazos. Entretano, os transumanistas têm estratégias de backup: criogenia e talvez criotanásia. Assim, os idosos amantes da vida podem desfrutar dessas opções. Se você deseja despertar daqui a cem ou mil anos, não precisa abandonar a esperança - desde que se inscreva para ser criogenicamente suspenso. Compreensivelmente, existem muitos céticos que questionam as técnicas atualmente disponíveis, ainda que a criogenia seja bem sucedida tecnicamente: a pessoa reanimada, reparada e talvez aprimorada depois de séculos terá seu senso de identidade mantido? Se você é uma alma atormentada que acorda preocupada com a possibilidade de ser uma pessoa diferente da sua homônima que adormeceu ontem à noite, então provavelmente não – ainda que estritamente falando, os egos metafísicos duradouros sejam uma ficção. Caso contrário, se você teme o esquecimento, talvez seja interessante considerar se inscrever para a criogenia até que a revolução da superlongevidade amadureça.

A superinteligência, por sua vez, é um conceito mais intrincada para definir em poucas palavras, pois os transumanistas diferem radicalmente em relação à sua natureza. Grosso modo, segue uma tricotomia:
Os transumanistas biológicos imaginam uma superinteligência de espectro completo com nossos descendentes modificados por IA e reescritos geneticamente.

Os "singularitarianos" de Kurzweil preveem uma fusão completa entre humanos e máquinas à medida que o crescimento exponencial do poder de computação acelera, possivelmente almejando o "upload da mente" para um substrato digital menos perecível - talvez já a partir da metade deste século (cf. A Singularidade está Próxima, 2005).

Já os teóricos da explosão da inteligência combinam a lei de Moore do crescimento exponencial do poder de computação com a ideia de uma IA baseada em software que se autoaperfeiçoa recursivamente e leva a uma explosão desenfreada da superinteligência das máquinas. Presumivelmente, o destino dos humanos nesse cenário é incerto.

Alguns transumanistas adicionariam ainda mais "supers". Podemos indagar, por exemplo: e quanto à superempatia? E uma capacidade super-humana de explorar estados de consciência alterados - o chamado transumanismo psicodélico? Porém, o termo "superinteligência de espectro completo" engloba todos os demais.


Sentience-Research: Não é surpresa que existam objeções ao transumanismo, tanto agora quanto antes, [isto é, a tentativa de direcionar o processo de criação da evolução biológica, intencionalmente aprimorada]. As objeções apresentadas antes das propostas transumanistas evoluíram desde a sua parceria com Nick Bostrom?

David Pearce: Tanto as objeções religiosas quanto as seculares ao transumanismo continuam as mesmas. A vida eterna parece entediante: o que faremos o dia todo? Como poderemos apreciar as coisas boas da vida sem um contraste com as experiências ngativas? Apenas uma elite privilegiada se beneficiará das tecnologias transumanistas. A modificação do genoma é um caminho escorregadio para a eugenia coercitiva. O transumanismo é apenas uma reformulação do Admirável Mundo Novo de Huxley. É antinatural. É brincar de Deus. Arrogância! E assim por diante... Contudo, as objeções técnicas ao projeto transumanista diminuíram ou estão em termos mais amistosos dado o avanço tecnológico. Por exemplo, os impulsores genéticos baseados em CRISPR desafiam as "leis" da herança mendeliana. Esses podem ser usados para erradicar doenças transmitidas por vetores e prevenir o sofrimento na natureza – além de serem capazes de auxiliar na criação de um ecossistema bem-aventurado para todos os seres sencientes. No entanto, os críticos destacam como os impulsores genéticos também podem ser usados por biohackers, super- terroristas ou entes estatais como armas biológicas para arruinar ecossistemas inteiros. Grande parte das críticas recentes ao transumanismo tem se concentrado nos riscos da inteligência artificial - seja a IA armamentista ou os riscos potenciais de "evocar uma calamidade" inadvertidamente. Naturalmente, uma explosão de Inteligência Artificial pode não terminar bem para a humanidade. Após sua concepção pelo matemático I.J. Good em 1965, Eliezer Yudkowsky, o Instituto de Pesquisa em Inteligência Artificial (MIRI) e, mais recentemente, Nick Bostrom (Superinteligência, 2014) exploraram os riscos para a humanidade de uma IA descontrolada baseada em software. Assim, os transumanistas não são unânimes em suas posições ou meros alienados adoradores da tecnologia, tal qual o estereótipo popular. Sabemos que inúmeras coisas podem dar errado.

Porém, o que significa que as coisas podem "dar errado"? Afinal, historicamente, diversos experimentos utópicos ao invés de evitar, acabaram causando mais sofrimento. Teoricamente, a edição genética pode transformar a natureza humana – que seria o obstáculo para utopias anteriores. Contudo, os humanos são intelectual e eticamente competentes o suficiente para orquestrar a sua própria metamorfose? E metamorfose em quê, exatamente? "Transumanismo" é um termo confuso. No entanto, se eliminarmos gradualmente os substratos moleculares de experiência abaixo do zero hedônico - meu foco principal - então a natureza das coisas “dando errado”, por consequência, também mudará. Se o sofrimento se tornar impossível dado que seus substratos biológicos estarão ausentes, então o inesperado, isto é: as "coisas dando errado", não podem ser literalmente ruins no mesmo sentido abjeto em que o termo é empregado. O argumento que sustenta essa transição especulativa em nossa arquitetura hedônica não contempla eufemismos. Existem, sim, riscos tanto para indivíduos quanto para a civilização em um mundo sem sofrimento - por exemplo, ficar estagnado em uma possibilidade restrita, ou seja, uma vida que seja "apenas" maravilhosa em vez de sublime e significativa. No entanto, diante do inferno darwiniano que se alastra pelo planeta, o risco de ficar sub-otimamente limitado em uma utopia medíocre não é exatamente grave. O maior desafio está na superação do abismo darwiniano. Os críticos do transumanismo temem as consequências da experimentação genética imprudente: um Admirável Mundo Novo de "bebês projetados". Porém, com exceção de anti-natalistas sem filhos, todos estamos inseridos nas teias de sofrimento para tentar satisfazer nosso desejo de reproduzir e transmitir nossos genes. Sob esse ponto de vista, todas as crianças geradas por vias naturais são vítimas de experimentos genéticos não testados, viciadas em opiáceos endógenos, nascidas com uma doença genética letal (envelhecimento) e ainda, experimentos propensos a uma vida inteira de sofrimento físico e psicológico. Se estamos determinados a criar novas vidas, então me parece prudente que ao menos o façamos de maneira mais responsável. Os pais em potencial deveriam ter acesso a um código benigno para sua prole.


Sentience-Research: O que posso perguntar a um homem que escreveu mais de 400 respostas no Quora?

David Pearce: Não sei! O que posso dizer? Acho que minha história é um pouco estranha. Aparentemente, sou bastante neandertal, ou pelo menos tenho mais variantes de neandertais do que 93% dos clientes da 23andMe. Sou vegetariano/vegano de terceira geração. Pelo menos três dos meus oito bisavós eram vegetarianos também. Meu bisavô materno pedalou de uma ponta a outra das Ilhas Britânicas em uma bicicleta de roda alta - não se trata de uma proeza atlética que eu pudesse emular. Minha avó materna se tornou vegetariana aos 10 anos, junto com a mãe, ao descobrir que o coelho da família estava destinado ao panelão; a vida em Manchester no início do século XX era difícil. Minha avó paterna se tornou vegetariana em 1930 ao se converter do Zoroastrismo para a Antroposofia. Minha mãe pertencia à Ordem da Cruz, um grupo pequeno e seleto de cristãos com vieses não sexistas que adoravam a Deus Pai-Mãe. Uma das minhas primeiras lembranças é de ter aprendido que eu poderia renascer talvez como menino, talvez como menina, porque o gênero não importava! Minhas iterações anterores ficariam surpresas, mas cheguei à concluão de que o gênero binário de fato deveria ir pelo mesmo caminho das superstições. Eu era mais conservado nesse aspecto naquela época. Em geral, era uma criança solitária e introspectiva, bastante melancólica e preocupada com a morte e o sofrimento. Eu costumava resgatar vermes em perigo de desidratação no asfalto e cuidava de formigas feridas que haviam sido pisoteadas. Com cerca de cinco anos, lembro-me de ter tentado afastar um passarinho melro-preto que puxava uma minhoca do quintal – para então me sentir tolo, derrotado pela inevitabilidade do sofrimento. Se o melro-preto não devorasse a minhoca, seus filhotes padeceriam de fome, embora a pobre minhoca também estivesse em apuros. Então, o que se poderia fazer? Posteriormnte, como um típico adolescente perturbado, balançava para frente e para trás ao som de música pop por horas a fio todos os dias em um quarto escuro, refletindo sobre a vida, a consciência e o universo - um "frenesi hipercolinérgico" de angústia adolescente. Ler sobre a descoberta de Olds e Milner dos centros de prazer do cérebro (como eram denominados) foi uma revelação. A autoestimulação cerebral não mostra condescendência. Então comecei a pensar em drogas futurísticas que poderiam recalibrar a esteira hedônica e a sonhar com a perspectiva tentadora de reformulações genéticas e nanotecnologia drexleriana (The Engines of Creation, 1986). Até que ponto "abaixo" da árvore filogenética seria possível chegar para erradicar a morte e o sofrimento? Assumi que minhas ideias estranhas eram impossíveis de serem publicadas, até que surgiu a Internet, mais especificamente a World Wide Web. Deste modo, no final de 1995, escrevi O Imperativo Hedonista (cf. hedweb.com) e nas últimas duas décadas mantive websites defendendo uma revolução da biofelicidade.


Sentience-Research: Na Wikipedia, podemos ler que você é um utilitarista negativo, uma posição filosófica que considera mais relevante reduzir o sofrimento ao invés de aumentar a felicidade. Mas você também fala constantemente sobre superfelicidade. Como essas duas ideias seriam reconciliadas?

David Pearce: Em um primeiro olhar, sim, há uma tensão entre a ética focada no sofrimento e a defesa da vida baseada em gradientes de felicidade. Se tudo o que importa é acabar com o sofrimento, para os utilitaristas negativos não deveria bastar um contentamento morno? Ao contrário da engenharia do paraíso, uma ética do utilitarismo negativo (UN) soa... deveras negativa, sombria, desmotivadora. "Utilitarismo negativo" é um péssimo termo, aliás. Mesmo um rótulo moralmente sério como "ética focada no sofrimento" é propenso a desestimular o espírito. Contudo, o utilitarismo negativo é, essencialmente, a formulação laica de uma ética budista empática ("Ensino apenas uma coisa: o sofrimento e o fim do sofrimento." - Gautama Buda). Nossa obrigação ética primordial é mitigar e prevenir o sofrimento em todo o mundo vivo. O utilitarismo negativo pode ser facilmente mal interpretado. À título de exemplo, pense em alguma proposta política que refita o pensamento de um UN e que você considere pouco atraente - ou mesmo um pouco decepcionante de contemplar. Assumindo que todas as demais variáveis sejam desprezíveis, tal opção política não pode ser considerada utilitariamente negativa. Isso se explica pelo fato de que os UN almejam, em última instância, abolir sentimentos de decepção, a frustração e tudo o que cause o menor sinal de preocupação, angústia e tristeza. Sua intenção se concentra em colabrar de forma eficaz para que todos sejam beneficiados de forma a tornarem sonhos em realidade! O utilitarismo negativo se pauta em uma ética extremamente compassiva. Naturalmente, o momento histórico atual abrange algumas questões de cunho prático que não eram pauta em outro tempos. Por exemplo, se contentar com um hambúrguer vegetariano quando você queria um hambúrguer "de verdade" pode ser decepcionante - pelo menos assim me disseram. Porém, a tecnologia pode eliminar a biologia da decepção em favor de seus análogos funcionais - quedas na sensação de bem- estar sensíveis à informação que nunca deixam de ser incríveis. Estamos tratando de gradientes de bem-estar abundantes em riqueza de detalhes, implementados de maneira perspicaz e socialmente responsável - um estado hedônico que venha a ser o padrão de felicidade ao invés de um estado indiscrimidado de euforia. Os amantes da vida, não os niilistas depressivos, herdarão a Terra. Espero que racionalistas científicos e crentes religiosos, utilitaristas negativos, utilitaristas clássicos e pluralistas éticos de todos os tipos possam colaborar para criar um paraíso pós-darwiniano por meio da biotecnologia e da inteligência artificial. A distição entre utilitaristas clássicos e negativos se pauta no fato de que os negativos tendem a sempre buscar algo mais profundo, um verdadeiro sentido de felicidade, ou seja, evitar o prazer obtido às custas da dor alheia. O que não os isenta de desejarem formas criativas de diversão e entretenimento - e idealmente, uma felicidade super-humana!

Essa resposta pragmática, contudo, não satisfará os críticos. Os utilitaristas negativos foram inclusive rotulados como um risco existencial – ainda que o verdadeiro risco subjacente à civilização em uma era de armas de destruição em massa resida na biologia do sofrimento involuntário. Apenas considere quantas das centenas de milhares de pessoas deprimidas e suicidas em potencial levariam o resto do mundo consigo, se pudessem. "Claro", diria o crítico, "mas como utilitarista negativo, você apertaria o botão desliga - por exemplo, e iniciaria uma limpeza macroscópica à vácuo que encerraria de maneira limpa e indolor o experimento da vida?"

Eu devo agora colocar meu chapéu de filósofo: condicionais contrafactuais não são condições de verdade. Ou então, posso desafiar o viés corrente e perguntar aos críticos se eles apertariam um botão hipopético de 'ligar' que geraria uma cópia tipologicamente idêntica do mundo - e, assim, criaria mais sofrimento do que Adolf Hitler. Vamos apenas dizer que eu deferiria a maneira de Buda.


Sentience-Research: Conte-nos algo sobre a motivação que o levou a desenvolver seu trabalho. O que faz você sair da cama (se é que você dorme!) e tentar salvar o mundo?

David Pearce: Selegilina, amineptina, nove ou dez xícaras de café preto com proteína e várias latas de Red Bull sem açúcar. Um regime que não funcionaria para todo mundo.

Mas falando sério, sou movido pelo problema do sofrimento - e pela necessidade de enfrentar esse mal incompreensível em sua origem. Como Thoreau observou, "Para cada milhares que cortam as ramificações do mal, apenas um está golpeando-lhe pela raiz". Eu me concentro principalmente em genética, mas apesar de parecer um determinista genético grosseiro obcecado em redesenhar nosso DNA, estou bem ciente de que a reforma sociopolítica também é essencial. Justiça social é imprescindível. Controle de armas, renda básica universal, reforma da saúde, igualdade de gênero e direitos LGBT são imprescindíveis. E a lista continua... Por ora, creio que nossa prioridade mais urgente é acabar com o holocausto dos animais não humanos. Nossas vítimas são tão sensíveis quanto o são crianças pequenas, de modo que seria sensato que fazendas industriais e matadouros fossem fechados e proibidos.

No entanto, a reforma social e a libertação animal não são suficientes por si só. A menos que enfrentemos as raízes biológicas-genéticas da miséria e do mal-estar, o sofrimento proliferará indefinidamente. Com certeza, os genomas são escritos em um código de espaguete terrivelmente complexo. No entanto, mesmo algumas mudanças genéticas na linha germinativa de animais humanos e não humanos poderiam reduzir drasticamente o sofrimento no mundo vivo. Assim, todos os bebês deveriam ser geneticamente projetados para a felicidade.


Sentience-Research: Você se sente uma pessoa de sucesso? Qual impacto emocional teve sobre você aprofundar sua compreensão da consciência? E, em particular, que impacto emocional teve em você aprofundar sua compreensão do sofrimento?

David Pearce: Sucesso? Não exatamente. Ocorre que a realidade é sinistra e maligna. A escala do sofrimento é inconcebível. Sinto-me impotente para fazer qualquer coisa a respeito dessas coisas – ao menos, sobre a maior parte.

Você pergunta sobre uma compreensão mais profunda do sofrimento. Temo que obter uma compreensão empática mais profunda induziria à loucura – ou, pelo menos, pioraria uma predisposição ao desamparo aprendido e ao desespero comportamental. Por outro lado, o tipo de compreensão mais profunda a que aspiro é neurocientífica e molecular-genética – as sombras formais e estruturais da experiência subjetiva em primeira pessoa. Somente descriptografando a assinatura física da dor, do prazer e dos mecanismos de feedback negativo da esteira hedônica no SNC podemos esperar remover o sofrimento inerente à história. Essa compreensão formal não é profunda, mas é potencialmente eficaz – que é o que realmente importa.


Sentience-Research: Sentience-Research: As pessoas que abordam suas ideias podem estar emocionalmente sobrecarregadas pela quantidade de sofrimento no mundo. A situação é ainda pior se considerarmos o sofrimento no multiverso. Você tem alguma dica pessoal de bem-estar para altruístas que levam “a sério demais” o ensaio sobre o sofrimento no multiverso?

David Pearce: Desculpe, mas a vida darwiniana é malévola além do imaginado. Faltam palavras pra descrever. Os conceitos não dão conta. E eu não tenho nenhuma ressalva para fazer você se sentir melhor, nem palavras de consolo - o tipo de papo açucarado que vende livros e traz fama e fortuna.

Sim, eu me preocupo com o monismo da função de onda - a possibilidade de que vivamos em um multiverso, os "diversos mundos" da mecânica quântica unitária. Veja, por exemplo, o livro Something Deeply Hidden (2019) do físico Sean Carroll para uma exposição popular lúcida, ou o Mad-Dog Everettianism (pdf) para o material pesado. Meu coração afunda. Mas suponha que a mecânica quântica unitária ("sem colapso") seja de fato verdadeira. Se assim for, então lidar com a biologia da dor e da depressão, fechar fazendas industriais e abatedouros, além de prevenir o sofrimento animal selvagem depreende ser muito mais importante do que se percebe. Afinal, ao escolher ajudar - ou não ajudar - apenas um outro ser sensível, você e seus homônimos em paralelo ("divisão") estarão ajudando inadvertidamente (ou deixando de ajudar) muito mais vítimas do que o realismo ingênuo perceptivo e o positivismo de Copenhague sugerem. Essa seria, pelo menos, uma maneira de analisar o que está acontecendo. Vamos esperar que a mecânica quântica sem colapso seja falsa. Isso me persegue desde que tropecei na tese de doutorado de Everett em Oxford. Os riscos de pensar demais sobre o sofrimento imenso e inevitável são a sobrecarga emocional, o fatalismo e o desespero – a síndrome de Burnout. Assim, a autocompaixão é vital para uma ação eficaz. Seu último entrevistado - meu bom amigo Magnus Vinding - nos lembra desse dever de autocuidado em seu livro Suffering- Focused Ethics (2020).


Sentience-Research: OK. Vamos supor agora que você seja bem sucedido e todo o sofrimento seja erradicado da face da Terra. Ou melhor dizendo, de todo o universo. Aliás, melhor ainda, de todos os universos. O que ocorre se as civilizações futuras esquecerem o que é o sofrimento? Isso não seria um grande risco?

David Pearce: Se uma civilização transumana esquecer prematuramente sobre o sofrimento, sim, há um risco de retorno. Além disso, alguns riscos de amnésia prematura podem ser sutis e claramente não óbvios. Como exemplo de uma catástrofe ética disfarçada de sucesso, imagine uma civilização alienígena que abraçou a revolução de biofelicidade que eu promovo. Todos os seres nessa civilização avançada levariam vidas magnificamente realizadas. Ninguém seria excluído do paraíso. A superfelicidade seria ainda mais maravilhosa do que os profetas previram. Nessa civilização não havria morte ou envelhecimento. A existência seria permeada de beleza. Seus parques de vida selvagem se assemelhariam ao Jardim do Éden. Não haveria segredos obscuros, nenhum jovem alienígena atormentado em um porão (cf. The Ones Who Walk Away from Omelas). Sim, é o Imperativo Hedonista! Contudo, ponderemos que essa civilização avançada tenha sido vítima de um terrível erro. Seus antepassados acreditavam que a vida primordial no universo era extremamente rara, então optaram por esquecê-la simplesmente. Caso tivessem perseverado em uma trajetória espacial árdua, conscientes de suas responsabilidades cosmológicas, então poderiam ter descoberto - e lançado missões de resgate cósmico para salvar a vida darwiniana que sofre na Terra.

Dado exemplo é provavelmente fantasioso. Por via das dúvidas, eu sou provisoriamente um seguidor da teoria de que a vida é de fato rara, baseado na improbabilidade termodinâmica dos organismos primordiais capazes de se auto replicarem terem sido os primeiros a sugirem. Creio ser muito provável que estejamos sozinhos em nosso universo observável, mas isso trata-se de mera suposição. Essa conjectura não deve ser considerada um fato científico. Assim sendo, eu não acredito que a civilização pós-darwiniana deva esquecer o sofrimento em absolto até que compreendamos a natureza da realidade e os limites teóricos dos agentes morais inteligentes no cosmos. Caso exista a menor possibilidade de que a vida darwiniana decorra em outro lugar dentro do nosso horizonte cosmológico, então devemos colocar nossas responsabilidades de resgate em primeiro lugar - o oposto da primeira diretriz, por mais que eu ame Star Trek. Na prática, a responsabilidade de longo prazo pelo zelo cósmico provavelmente pode ser transferida para a IA não-senciente; o "hardware" biológico não é projetado para viagens interestelares e exploração galáctica. No entanto, ainda não sabemos se a responsabilidade ética pode ser seguramente transferida para zumbis digitais, ou quais seriam as especificidades da "administração cósmica".

Caso nos esqueçamos completamente do sofrimento, ainda existe um risco de que ele possa ser recriado. Afinal, alguns transumanistas bem conhecidos, especialmente Nick Bostrom - um amante fervoroso da vida - especularam sobre uma civilização ultra-avançada criando "simulações de ancestrais" virtuais - e questionaram se, estatisticamente, poderíamos ser uma delas. Particularmente não acredito em senciência digital e na ideia de que sujeitos unificados de experiência possam surgir em diferentes níveis de abstração computacional. Contudo, ainda que eu esteja enganado, não imagino uma civilização avançada recriando o Holocausto, digamos, sob a forma de simulações virtuais de ancestrais. Afinal, estamos falando de superinteligência pós-humana, não do Diabo. Desconsideremos, então, as simulações de ancestrais, pelo menos por ora. Vamos assumir que exerienciamos a realidade basilar. Imagine nossos descendentes, uma civilização pós-humana com uma gama hedônica esquematicamente de +70 a +100 ao invés de nosso -10 a 0 a +10, com o hedônico +70 sendo o equivalente ao nosso momento mais sombrio. Nesse cenário, torna- se difícil prever que alguém queira explorar os anos sessenta, por exemplo, quanto mais penetrar no inimaginável marco abaixo do zero hedônico. Daqui a séculos, quiçá devêssemos pausar o aumento hedônico e começar a nos preocupar com os riscos de amnésia prematura. No momento atual, todavia, o risco de esquecer o sofrimento não é um dos nossos desafios mais urgentes.


Sentience-Research: Qual é a sua melhor teoria sobre a natureza da consciência?

David Pearce: Primeiro, um adendo. Ninguém entende a consciência. E nenhum defensor da ética centrada no sofrimento precisa levar a sério nenhuma das especulações incomuns que eu entretenho. Importante frisar que os materialistas científicos ortodoxos podem se inscrever no projeto abolicionista, pois o ponto crucial para nossas perspectivas de eliminar o sofrimento não depende da veracidade ou não do materialismo, mas sim do fisicalismo monístico. A concepção de que apenas o sensível é real e tem eficácia causal, de que a realidade é descrita exaustivamente pelo formalismo matemático da física, e de que justamente por isso a tecnologia funciona. Infelizmente, contudo, ainda me preocupo que sejamos ignorantes e iludidos, pois a ciência não compreende a existência em sua totalidade, o vínculo fenomenal, a relação causal e as diversas nuances da consciência. Em suma, a evidência empírica. Pior ainda, o mistério da consciência não pode ser isolado de nossa compreensão do resto da realidade física, como supõem implicitamente os realistas perceptuais diretos. A mente consciente de alguém e toda a simulação do mundo fenomenal que ela executa não deveriam existir se os físicos e químicos realmente entendessem a natureza fundamental da matéria e da energia. Da mesma forma, a mente consciente de alguém e toda a simulação do mundo fenomenal que ela executa não deveriam existir se os neurocientistas compreendessem corretamente os cérebros como pacotes de neurônios decoerentes: o vínculo fenomenal é classicamente impossível. Da mesma forma, "observações", "observadores" e a experiência subjetiva de resultados definitivos na simulação do mundo de alguém não deveriam existir se os físicos realmente entendessem a equação de Schrödinger universal (generalização relativística), a base da física moderna. O problema da medida na mecânica quântica é um escândalo no coração da física: no estado atual, o programa de decoerência por si só não o resolve. A consciência é a evidência empírica - a nossa ferramente mais confiável. Toda a conversa que se lê sobre a adequação "empírica" da ciência, sobre o "progresso" na neurociência e o "sucesso" do Modelo Padrão na física é um farrapo de autoengano e propaganda. O chamado materialismo científico é um programa de pesquisa degenerativo: não é empiricamente adequado.

Isso posto, qual é a minha melhor suposição?
Exploro uma mistura do teoricamente conservador e do seriamente estranho - uma versão do que os filósofos chamam de argumento da natureza intrínseca. O fisicalismo é verdadeiro. A mecânica quântica unitária (ou seja, a MQ sem o postulado ad hoc do colapso) é formalmente completa. Mas a maquinaria matemática da teoria da física quântica descreve campos de consciência ao invés de inconsciência. Assim, o que torna as mentes biológicas especiais não é a consciência em si, mas a ligação fenomenal não psicótica. Você e sua simulação do mundo fenomenal são o que uma mente quântica parece por dentro. Eu investigo uma conjectura de "neurônios de Schrödinger". Mais formalmente, eu exploro a versão teórica quântica do argumento de natureza intrínseca para o fisicalismo não materialista. Você e seu mundo fenomenal consistem em "estados de gato" esculpidos pelo mecanismo de seleção mais poderoso já concebido, o darwinismo quântico de Zurek, ou seja, o programa de decoerência na mecânica quântica pós-Everett aplicado ao sistema nervoso central.

Qualquer pessoa que conheça um pouco de física perceberá porque essa versão da mente quântica é tão improvável - não porque a conjectura invoque uma modificação da dinâmica unitária de Schrödinger como Orch-OR ou uma teoria de colapso espontâneo, mas sim porque a vida teórica das superposições neuronais ("estados de gato") no SNC é de femtossegundos ou menos. Os cérebros são muito quentes para sustentar a coerência quântica. A decoerência é muito forte e incontrolável. A escala dinâmica de tempo das superposições neuronais está errada por muitas ordens de magnitude. Nossas vidas mentais e as simulações de mundo fenomenais se desenrolam ao longo de dezenas de milissegundos, não de femtossegundos! A coerência de fase entre os componentes das superposições neuronais é misturada muito rapidamente para ser remotamente relevante para a consciência. Então, ingenuamente novamente, as superposições neuronais são (no máximo) "ruído" funcionalmente irrelevante em vez de uma solução credível para o problema da integração. A consciência deve (de alguma forma) ser clássica e emergente. Talvez então, criticamente, a versão quantum-teórica do argumento de natureza intrínseca não se trata de escalas temporais dinâmicas; é uma teoria da natureza intrínseca do físico, o elusivo "fogo" nas equações da teoria quântica ou em seu sucessor mais robusto. Em minha especulação, apenas o fato de que o princípio de superposição da mecânica quântica não caia sobre a sua cabeça (ou qualquer outro lugar) permite que cada um de nós execute uma simulação de mundo fenomenalmente conectados que pode ser descrita por uma aproximação da física clássica. Somente a ubiquidade do princípio de superposição permite que você (um "observador") experimente resultados definidos fenomenalmente ligados ("observações") dentro de sua simulação de mundo. Importate ressaltar que essa interpretação do formalismo da mecânica quântica é uma inversão da história normal da física, segundo a qual as superposições existem apenas quando não observadas, após o que desaparecem inexplicavelmente - o infame "colapso da função de onda". A suposição absurdamente óbvia de que as superposições não são experimentadas gera o problema da medição - a suposta transformação não unitária do vetor de estado na medição em um estado clássico aparentemente definido de acordo com a regra de Born. Se eu posso citar uma observação de Albert Szent-Gyorgyi frequentemente atribuída de forma equivocada a Schrödinger: "A tarefa é, não tanto ver o que ninguém viu ainda, mas pensar no que ninguém pensou ainda, sobre aquilo que todos veem." Deste modo, um zumbi microexperimental imaginário, composto de cerca de 86 bilhões de neurônios clássicos decoerentes e limitados por membranas - o alicerce da neurociência convencional - não poderia observar um gato vivo (ou morto), ou o aparato para detectar o spin de um elétron - ou qualquer outra coisa. O problema da medição na mecânica quântica e o problema da ligação na neurociência são duas faces da mesma moeda - e compartilham uma solução.

Como eu disse, coisas malucas! E não se preocupe, eu prometo que não creio em tais especulações – é uma conjectura, passível de refutação pelos métodos normais da ciência, nesse caso interferometria. Se eu ficar confuso – como é bem possível! – não espere que a verdadeira explicação do problema difícil da consciência, do vínculo fenomenal e do paradoxo da medição seja mais racional. Ao contrário da verificabilidade, a credibilidade é um desvio de foco. Todas as opções são bizarras e absurdas. Criticamente, se o vínculo fenomenal é não-clássico, então a assinatura de interferência, a ser revelada pela interferometria de ondas de matéria molecular, nos dirá: uma conjectura de "neurônios de Schrödinger" prevê uma correspondência estrutural perfeita. O que os realistas perceptuais e ingênuos chamam de vínculo fenomenal por meio da sincronia – uma mera reformulação do problema de vínculo – são na verdade superposições de processadores de características neurais distribuídos em seu sistema nervoso central. Essa explicação da consciência e do vínculo não se baseia em alguma sutileza relacionada ao teorema da incompletude de Gödel, como a teoria Orch-OR de Penrose-Hameroff. O vínculo fenomenal é a base da nossa vida mental. Em humanos e animais não-humanos com capacidade para movimento próprio rápido, o vínculo fenomenal não psicótico é para o que a consciência evolutivamente "serve": a criação de um mundo fenomenal em tempo real é ridiculamente adaptativa. Enquanto isso, até que possamos realizar os testes interferométricos, acredito que a melhor evidência empírica de que você é uma mente quântica – mas não um supercomputador quântico universal! – se encontra sob a forma de unidade de consciência. A menos que esteja dormindo sem sonhos, você não é apenas padrões de "poeira mental" de James, muito menos uma máquina de Turing clássica, mas um sujeito unificado de experiência, um mundo egocêntrico.

A relevância ética da (conjeturada) supremacia quântica das mentes biológicas é principalmente negativa. Se a ligação fenomenal e a unidade da consciência são não- clássicas e se o dualismo é falso, então sujeitos unificados de experiência não vão "emergir" espontaneamente em computadores digitais programáveis, robôs inorgânicos ou sistemas de conexão paralela clássicos. Assim, o projeto abolicionista de acabar com o sofrimento está efetivamente confinado à vida biológica - com complicações em, por exemplo, mini- cérebros de laboratório. Da mesma forma, os humanos não vão "transferir" nossas mentes para computadores digitais. A "emulação do cérebro inteiro" é fisicamente impossível - nossas mentes são padrões no substrato quântico subjacente do mundo. Computadores quânticos futuristas não biológicos que exploram o substrato quântico do mundo também podem suportar uma sensibilidade exótica, mas não temos motivos para acreditar que os computadores quânticos abióticos terão um eixo de prazer-dor. Portanto, a importância da computação quântica artificial será instrumental em vez de intrínseca.


Sentience-Research: Qual é a sua ideia mais mal compreendida? Há algo que você possa dizer aqui para esclarecer as coisas?

David Pearce: Bem, eu já li que quero "exterminar" predadores. Um crítico gentil até sugeriu que eu merecia um evento de extinção nomeado em minha homenagem para rivalizar com o Permiano-Triássico; uma perspectiva lisonjeira, mas acredito que um banco de parque é mais realista. Lendo os comentários abaixo, como Plano para Eliminar as Espécies Predadoras da Terra, eu reviro os olhos. Eu não machucaria uma mosca - literalmente. E fica pior. Quando os críticos descobrem que você é um utilitarista negativo (UN), eles dizem que você está encorajando (se não planejando ativamente!) o fim do mundo. As implicações latentes apocalípticas do utilitarismo clássico, ou seja, a obrigação de agentes morais inteligentes de lançar uma onda de choque de utilitronium/hedonium para maximizar a abundância cósmica de felicidade em nosso universo observável, não receberam muita atenção acadêmica. Daí a falta de uma refutação acadêmica. Em contraste, as aparentemente apocalípticas implicações do UN foram notadas quase de pronto em sua formulação - e normalmente são tratadas como reductio ad absurdum. Quando Nick e eu fundamos a Associação Transumanista Mundial (H+), Nick sabia que eu era um UN, e eu sabia que Nick estava preocupado com o risco existencial. Entretanto, os UN não passam seu tempo conspirando o Armagedom mais do que os UCs estão planejando uma onda de choque de utilitronium. Pelo menos, não ainda.

O que mais? Bem, falar de "engenharia do paraíso" pode parecer como se eu estivesse tentando vender minha versão de utopia. Eu poderia, de fato, compartilhar com você meu sonho particular de uma sociedade ideal - todo mundo perpetuamente "amoroso" na contraparte geneticamente expressa do MDMA! Mas essa pequena fantasia não faz parte do pacote. Complicações à parte, a recalibração hedônica radical é neutra em relação às preferências individuais. A neutralidade em relação às preferências é imprescindível.

Imagine a sua versão da boa vida, suas experiências de pico, suas fantasias pessoais mais queridas e sua concepção do paraíso. Agora, aumente geneticamente a gama hedônica e os pontos de ajuste hedônicos. A recalibração hedônica pode tornar sua visão do paraíso mais rica do que você jamais sonhou. Melhor ainda, a recalibração hedônica pode evitar a sabotagem de seu paraíso perfeito através dos mecanismos de feedback negativo de uma esteira hedônica darwiniana. No mundo da engenharia do paraíso de amanhã, seus prazeres serão sempre sublimes.

Um mal-entendido final - embora seja minha culpa. Nem sempre defendo explicitamente que devemos abolir todo sofrimento involuntário, ao invés de apenas todo sofrimento. Prevejo cautelosamente que todo sofrimento será erradicado ao longo dos próximos séculos – de maneira pessimista, nos próximos milênios - mas não através da coerção. Não se trata de forçá-lo a ser feliz contra a sua vontade se você quiser o "direito" de ficar triste. Os debates sobre se a humanidade deve visar erradicar o sofrimento seriam mais curtos caso se concentrassem na questão da defensabilidade de conservar a biologia da miséria coerciva.


Sentience-Research: Em "Fisicalismo Não-Materialista: uma hipótese testável" você menciona "algum tipo de Pedra de Roseta para 'ler' os valores de qualia - tanto ligados quanto desligados - das soluções para as equações de teoria do campo [quântico]". Você tem alguma especulação sobre o que a Pedra de Roseta poderia ser?

David Pearce: Pelo que eu posso dizer, uma Pedra de Roseta hipotética precisaria vir de "fora" da função de onda universal - o que é fisicamente impossível, de fato, incompreensível. Então, mesmo que o fisicalismo não-materialista acabe sendo verdadeiro, sou pessimista em relação à compreensão da consciência em um sentido profundo - embora minha juventude em contato com psicodélicos possa colorir meu pessimismo aqui também. Com certeza, alguém que apresenta respostas para o problema difícil da consciência, o problema da união, o problema da relação causal e outros mistérios da metafísica materialista pode ser confundido com um otimista intelectual. Não é assim. Eu simplesmente acho que as suposições de fundo centrais que sustentam nossa formulação comum desses problemas estão equivocadas.

Apesar da ausência de uma Pedra de Roseta cósmica, os diversos valores de qualia hipoteticamente codificados nas soluções das equações de física quântica teórica provavelmente não são arbitrários. As texturas da consciência podem muito bem ser tão interdependentes quanto as verdades da matemática. Porém, ao contrário da matemática, não temos pistas sobre o(s) princípio(s) fundamental(ais) subjacente(s) à paleta de experiências para nos guiar, apenas fatos brutos em primeira pessoa. Admitidamente, especulei que as texturas de qualia codificadas pelas soluções das equações de física quântica teórica podem precisamente "cancelar" a zero como parte de uma ontologia zero sem informações (cf. Por Que Existe Algo em Vez de Nada?). Talvez pense em todas as cores do arco-íris, por assim dizer, "cancelando" a luz branca incolor - se me permite a dúbia metáfora estilo Nova Era. De qualquer forma, não leve tais devaneios muito a sério. E é claro que a estrutura conceitual do fisicalismo não-materialista em si pode muito bem ser falsa. O argumento da natureza intrínseca está atualmente desfrutando de um renascimento acadêmico, mas ainda é uma visão minoritária. Tente dizer a um materialista científico convicto que sua teoria preferida de consciência é o Modelo Padrão em física e você ganhará alguns olhares estranhos. Eu realmente sou o que digo, confundido com a existência.


Sentience-Research: Por que você acha que uma superinteligência de espectro completo não escolheria, em certas situações, permanecer ignorante sobre os sentimentos de alguém para alcançar seus objetivos?

David Pearce: Tanto instrumentalmente quanto como objetivo em longo prazo, acho que os agentes inteligentes devem buscar a ignorância seletiva. Se, como eu, você possui um estilo cognitivo de baixo QA (cf. teste de quociente do espectro autista), então, ingenuamente, não é difícil acreditar que o que o mundo mais precisa é de compaixão e amor. Seres sencientes precisam de ajuda, não de piedade! Assim, sugiro que evite colaborar com a crueldade contra animais e conside tornar-se vegano. A liberação de oxitocina levará a um aumento da empatia. Infelizmente, a função aumentada da oxitocina também está associada ao nepotismo, tribalismo e hostilidade contra grupos externos - ou, no melhor dos casos, ao altruísmo autorreferencial. É comparável a tomar uma droga confortante como MDMA ("Êxtase"). Ainda, na medida em que a ética é computável, precisamos também da benevolência imparcial de hipersistemizadores autistas - seja humano, transumano ou inteligência artificial.


Sentience-Research: Como sua visão difere do realista indireto perceptual?

David Pearce: Um realista indireto perceptual acredita que vemos o mundo apenas por meio de dados sensoriais intermediários. Em uma visão realista inferencial, não percebemos o mundo. Em vez disso, cada um de nós executa simulações fenomenais do mundo. Dessa forma, a realidade externa é para eles uma hipótese. Quando estamos acordados, nossas simulações do mundo são parcialmente moldadas por entradas nervosas periféricas. Portanto, nossas simulações do mundo fenomenal rastreariam padrões macro relevantes para a aptidão no ambiente teoricamente inferido. O que o ambiente externo faz, essencialmente, é selecionar estados de nossas mentes/cérebros que se disfarçam como nossa realidade externa. Não observamos literalmente nossos arredores locais - se fizéssemos isso, magicamente, veríamos o interior de nossos crânios. É desconcertante, as pessoas virtuais nesta simulação do mundo egocêntrico são zumbis, os avatares cartunescos de seres sensíveis no mundo independente da mente. Esquizofrênicos, usuários de DMT que conversam com seres mecânicos e também racionalistas científicos conversam com fantasmas de suas próprias mentes. Assim, um neurocirurgião operando um paciente não vê - diretamente ou indiretamente - tecido nervoso exposto cirurgicamente. Ao invés disso, a imagem corporal do neurocirurgião opera em outro "ícone de interface" (metáfora de Donald Hoffman) dentro de sua própria simulação fenomenal limitada pelo crânio. Compare como, durante um sonho lúcido, você pode distinguir entre seu crânio empírico tangível e seu crânio transcendental teoricamente inferido. Você pode reconhecer que os habitantes de seu mundo de sonho lúcido devem ser zumbis. Da mesma forma, durante a vida desperta, é necessário distinguir entre o crânio empírico e o crânio transcendental teoricamente inferido, no qual o drama de sua vida se desenrola. "Acordar" todas as manhãs para se comunicar diretamente com o mundo externo é uma ficção pré-científica - bastante útil, contudo, ao atravessar uma rua.

Já as evidências para o realismo inferencial são bastante convincentes. Essas têm sido centrais em meu quadro conceitual desde a adolescência. No entanto, o realismo inferencial é a receita para uma vida solitária (cf. O problema da ancoragem simbólica). Por outro lado, o fisicalismo não-materialista é extremamente especulativo. A possibilidade de que a experiência revele a essência do físico me parece insana, pois não sou totalmente imune ao senso comum.


Sentience-Research: Que leituras podem ser úteis para entender sua visão sobre consciência?

David Pearce: Eu anexei várias respostas no Quora:
Quora Answers

Ou talvez veja, por exemplo,
Is the brain a quantum machine?


Sentience-Research: Qual é a sua abordagem em relação à produtividade pessoal? Você acha que poderia ser mais produtivo?

David Pearce: Bem, eu gostaria de esquecer o realismo inferencial e me tornar um realista ingênuo. Realistas perceptuais diretos são melhores altruístas eficazes. Às vezes, eu gostaria de ter delírios messiânicos, ou pelo menos um adesivo de testosterona para me tornar mais determinado. Se você tem uma visão inflada da sua própria importância no grande esquema das coisas, pode se tornar determinado a realizar grandes feitos benéficos para o mundo - e maléficos também, caso estrague tudo. Por outro lado, eu luto com o realismo depressivo.

[Por que eu não uso um adesivo de testosterona? Medo de perder meu cabelo! Sim, triste. Eu sei que deveria desprezar tais vaidades mundanas.]


Sentience-Research: Como você entende a posição anti-realista sobre valores?

David Pearce: Vamos assumir o fisicalismo, seja o fisicalismo "materialista" convencional ou seu recente parente não-materialista. Em ambos os casos, os supostos fatos morais são o que o filósofo J. L. Mackie (cf. Ética: Inventing Right and Wrong, 1977) chamou de "estranhos", isto é, um híbrido único e inexplicável entre o descritivo e o normativo. Como materialista, Mackie foi explícito sobre o que se seguia desse status anômalo. Isto é, todas as avaliações morais são falsas. Não há diferença fundamental e objetiva entre defender seus valores éticos e apoiar seu time de futebol. Você e eu podemos ser fortemente contrários, por exemplo, ao estupro, tortura e abuso infantil. Porém, afirmar que tais comportamentos são moralmente asquerosos expressa apenas nossa psicologia pessoal em vez de capturar algo inerentemente errado em tais práticas. Assim, nossas respostas podem ser explicadas pela psicologia evolutiva. Caso manter relação sexual com as nossas genitoras tivesse promovido o sucesso evolutivo de nossos genes no ambiente adaptado à evolução - como em aranhas matrifágicas -, então tal prática poderia muito bem parecer um dever sagrado até hoje.

Eu defendo o realismo de valores. (Des)valor é dependente da mente, portanto, uma característica objetiva da realidade física. A discordância moral decorre de nossas limitações epistemológicas. Dessa forma, o eixo dor-prazer revela a métrica intrínseca do (des)valor do mundo.


Sentience-Research: Deveriam os altruístas focados no sofrimento tentar entrar na política?

David Pearce: Seria possível ser mais eficaz entrando na política ou fazendo lobby para que partidos políticos adotem ideias transhumanistas/EA? Ou ambos? Os Estados Unidos têm tanto um Partido Transumanista quanto um candidato presidencial transumanista republicano (!), Zoltan Istvan. Eu adoraria ver os três "supers" transumanistas no centro da formulação de políticas. E também apresentar a visão transumanista de nosso glorioso futuro e confiar que suas ideias serão luminosamente autoevidentes, o que costuma ser a minha abordagem natural, mas essa provavelmente não é uma receita para o sucesso - ou pelo menos não para o sucesso com algum tipo de métrica objetiva. Porém, há de se levar em conta que inevitavelmente, a política é um assunto sórdido quando praticada por macacos maquiavélicos; portanto, é mais fácil permanecer puro e impotente à margem. Como observou Adlai Stevenson: "A questão mais difícil em qualquer campanha política gira em torno de vencer sem provar que você é indigno de vencer".
Poderiam os transumanistas e altruístas eficazes fazer melhor?


Sentience-Research: Quem devemos entrevistar a seguir?

David Pearce: Talvez Andrés Gómez Emilsson, do Qualium Research Institute?


Sentience-Research: Qual organização sem fins lucrativos está faltando no mundo?

David Pearce: Um ambicioso "Plano de Cem Anos" para erradicar o sofrimento por meio de intervenções biológico-genéticas seria tecnicamente viável utilizando extensões reconhecíveis das tecnologias existentes - edição genômica, impulsores genéticos, carne cultivada e aconselhamento e triagem genética pré-implantação para todos os futuros genitores. Uma organização global séria para implementar um mega-projeto como esse parece fantasiosa. Surpreendentemente, contudo, tal organização existe. A Organização Mundial da Saúde é dedicada à promoção da boa saúde para todos, conforme estabelecido em sua constituição fundadora (1946). "Qual é a definição da OMS de saúde? Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social". Repare bem no "completo". O bem- estar completo é uma definição ousada e surpreendente de saúde. Compare com os mergulhos incompletos e sensíveis à informação instigados por alguns transumanistas supostamente visionários. Talvez precisemos de uma espécie de Greta Thunberg para lembrar aos nossos políticos de que eles têm a responsabilidade de garantir a saúde pública, ou seja, a abolição do sofrimento por meio da ciência médica.


Sentience-Research: Qual seria a sua explicação mais caridosa da posição eliminativista?

David Pearce: O materialismo científico é a nossa melhor descrição do mundo. Diferente de qualquer outro sistema de crença, a ciência funciona: a civilização tecnológica parte daí. Nossa melhor teoria científica da realidade não tem lugar em sua ontologia para qualquer experiência subjetiva. Ainda, o comportamento da matéria e da energia, incluindo robôs biológicos naturalmente evoluídos como os seres humanos, pode ser explicado exaustivamente sem invocar a consciência. Portanto, a experiência subjetiva não pode realmente existir. É uma ilusão.

Pois então, a defesa do eliminativismo é um desafio - a menos que você seja um zumbi filosófico, e infelizmente eu não sou tão abençoado. Eu gostaria que o eliminativismo fosse verdadeiro. Pois se a consciência não existisse, então não haveria problema de sofrimento - apenas os (não) problemas da algesia, da supressão comportamental depressiva e das vocalizações causadas por estímulos nocivos.

Assim como os eliminativistas, suspeito que os humanos entendam radicalmente mal o que chamamos de consciência - assim como esquizofrênicos religiosos podem entender mal o que ouvem como se fosse a voz de Deus. Por certo concordo com os eliminativistas em que apenas o físico é real. Onde eu discordaria dos negadores da consciência é sobre a essência do físico. Os anti-realistas sobre a consciência - e de fato, os materialistas científicos mainstream - assumem que o "fogo" nas equações deve ser não-experencial. Por outro lado, o fisicalismo não-materialista propõe que a experiência subjetiva revele a natureza intrínseca do "fogo" - a essência numenal do mundo kantiano - supostamente desconhecida e incognoscível. Em outras palavras, o fisicalismo não-materialista é anti-realista sobre o "físico" como concebido pelo materialista reducionista. Talvez os campos de insenciência hipotetizados pela metafísica materialista estejam destinados a seguir o caminho do éter luminífero.
Veremos.


Sentience-Research: Há algum papel para drogas psicodélicas na compreensão da consciência?

David Pearce: Tentar entender a consciência sem explorar estados de experiência alterados é como tentar entender matéria e energia apenas por meio da observação, pois a ciência não experimental sempre será superficial. A comunidade racionalista se preocupa principalmente com viés cognitivo, enquanto eu me preocupo mais com a ignorância, em particular a ignorância em relação às drogas. Certamente, há enormes desafios metodológicos na exploração psicodélica. Porém, transformar o estudo da consciência em uma ciência experimental em vez de uma conversa filosófica não acontecerá tão cedo. Estados de consciência diversos muitas vezes são mutuamente incomensuráveis. Pior ainda, não há um meio "neutro" canônico de experiência por meio do qual os psiconautas possam avaliar imparcialmente todos os outros modos de experiência. Qualquer distinção entre conteúdo veicular e proposicional é artificial. Agravando o desafio, estados de consciência alterados não foram recrutados pela seleção natural para nenhum propósito de sinalização de informação. Então, nós nem sequer temos um quadro conceitual pseudo-público para a exploração sistemática deles. Hoje, mergulhar de cabeça na psicodelia pode ser um convite para a psicose, não para a iluminação. Contudo, a menos que estejamos dipostos a expandir nossa base de evidências empobrecida, nossa ignorância permanecerá enraizada.

Eu poderia agora mesmo condenar o proibicionismo. O status desonroso dos agentes psicodélicos na academia gerou ignorância e obscurantismo acadêmico. No entanto, eu também sou um hipócrita. Caso tivesse filhos, não gostaria que eles explorassem psicodélicos - ou qualquer coquetel de drogas mais forte do que café preto. Mentes darwinianas são muito sombrias e disfuncionais para explorar com segurança uma consciência radicalmente alterada. No futuro será diferente.


Sentience-Research: Você acha possível abolir o sofrimento para sempre?

David Pearce: Em nosso cone de luz futuro? Sim. Depois que identificarmos a(s) assinatura(s) molecular(es) da experiência abaixo do zero hedônico, o sofrimento pode se tornar impossível. A Zona do Mal (ou como nossos sucessores conceitualizarem a consciência darwiniana) pode ser circunscrita com múltiplas barreiras à prova de falhas para acesso. Hoje, o isolamento molecular parece ambicioso demais devido à ampliação constante do alcance de objetos intencionais com os quais os seres humanos podem ser (in)felizes "sobre". [Intencionalidade é jargão filosófico para a direção de objetos do pensamento]. Mas o coração das trevas está nas emoções centrais e desagradáveis do nosso sistema límbico. A evolução "encefalizou" nossas emoções antigas de maneiras que aumentam a aptidão, "pintando" com cor afetiva estímulos fenomenais intrinsecamente neutros em nossas simulações de mundo neocortical. A novidade evolutiva tardia da sintaxe generativa amplia enormemente o alcance de nossos descontentamentos nominais. No entanto, no vasto espaço de estados possíveis de todas as experiências, a maldade subjetiva é apenas um canto comparativamente pequeno. Se a humanidade se organizar, então o sofrimento pode ir pelo mesmo caminho do relógio de corda.

Não seria prudente descartar possibilidades cosmológicas exóticas em que o sofrimento possa recorrer. Entretanto, insisto que enquanto não erradicarmos geneticamente o sofrimento em todo o mundo vivo e garantirmos a impossibilidade de sofrimento adicional dentro de nosso horizonte cosmológico, creio que nossos deveres éticos mais urgentes não terão sido cumpridos.


Sentience-Research: O que você acha do estado atual da tecnologia de realidade virtual?

David Pearce:Os mundos virtuais de brinquedo de hoje são uma prévia tênue da realidade virtual multimodal madura. A realidade aumentada e a realidade virtual imersiva se tornarão cada vez mais compulsivamente viciantes, já que os superestímulos sequestram nosso circuito de recompensa. Lamentavelmente, a VR por si só não pode banir a necessidade de uma revolução de biofelicidade. A menos que hackeemos a esteira hedônica, estados de miséria e mal-estar persistirão mesmo em utopias virtuais criadas, assim como persistem no que realistas ingênuos chamam de mundo real. Nem mesmo a RV utópica pode recalibrar a esteira hedônica. Assim, vamos assumir melhorias no caminho da recompensa do mundo real. Afinal, ainda que com recalibração hedônica, ainda é difícil ver como a vida na realidade básica pode competir.

Realistas diretos perceptuais vão reclamar que as pessoas estão perdendo o contato com a realidade. Críticos já o fazem agora com as mídias sociais e os videogames. Mas talvez nossa escolha seja entre viver a vida em VR orgânica natural ou viver em VR sintética: até os porões reformados serão comparativamente entediantes. Note que esse sentido de "realidade de porão" e mundos virtuais artificiais difere da ideia de que seres sencientes possam ser digitalizados e instanciados no silício ("upload da mente") ou que sujeitos de experiência de alguma forma "emergirão" em diferentes níveis de abstração em computadores digitais.

Alguns futuristas se perguntam se os transumanos acabarão passando toda a sua vida em Máquinas de Experiência. Esse cenário de RV é problemático. A pressão de seleção na realidade do porão também deve ser considerada. Assim como os wireheads não buscam criar bebês, os viciados em experiências com as máquinas também não buscam criar bebês biológicos. O poder final - e a responsabilidade - está nas mãos de quem controla a base.


Sentience-Research: Você tem planos para desenvolver a Fundação de Neuroética?

David Pearce: Em princípio, eu adoraria ter uma equipe de pesquisadores trabalhando em tempo integral no projeto abolicionista. Adoraria poder oferecer oportunidades para o desenvolvimento de carreira. Se você é um grande investidor financeiro, sinta-se à vontade para entrar em contato. Talvez dizer às pessoas que meu modelo é 'Diógenes em sua banheira' não tenha sido a melhor maneira de atrair financiamento sério.


Sentience-Research: Do you think it is possible to have a civilization which takes reducing suffering as its main mission?

David Pearce: Uma civilização global com uma ética budista - ou sua contraparte secular - é concebível. Infelizmente, não considero tal civilização provável. Em consequência, a abolição do sofrimento será desnecessariamente prolongada. Por razões evolutivas, a maioria das pessoas relata que ama a vida ("A vida é cheia de miséria, solidão e sofrimento - e acaba rápido demais" - Woody Allen). A maioria das pessoas não quer se concentrar nos males da existência. Mesmo entre pessoas reflexivas que reconhecem que o problema do sofrimento está no centro da ética, falar em "acabar com o sofrimento" pode parecer grande demais - impreciso e grandioso demais. Mesmo intervenções pontuais e bem direcionadas, como a erradicação da malária ou o fim da criação de animais em fábricas, são proibitivamente difíceis. Por outro lado, havendo um consenso global para o projeto abolicionista, um Plano de Cem Anos visando a base biológico-genética do sofrimento provavelmente poderia funcionar. Mas esse tipo de escala de tempo é sociologicamente fantasioso.


Sentience-Research: Por que relativamente poucos altruístas eficazes estão interessados no transumanismo?

David Pearce: Primeiramente, faça uma análise de seus pontos fortes e fracos. Você está melhor equipado temperamentalmente para seguir uma carreira em ciência médica, bioética ou ativismo, ou para seguir uma carreira mais convencional enquanto ganha para doar? Considere criar um canal no YouTube e fazer podcasts. Crie seu próprio site dedicado ao assunto. Tuíte sobre. Tente editar a Wikipedia. Junte-se ao grupo do IH no Facebook - a construção da comunidade é importante. E, não menos importante, fale com Manu Herrán e seus colegas da Organização para a Prevenção do Sofrimento Intenso - OPSI.


Por que relativamente poucos altruístas eficazes estão interessados no transumanismo?

David Pearce: Preocupa-me que (alguns) transumanistas tenham um ponto cego moral. A maioria dos transumanistas são otimistas que amam a vida e se concentram em estender radicalmente a vida humana e desenvolver superinteligência, em vez de se concentrar nas preocupações tradicionais dos altruístas eficazes. Sejamos sinceros, passar a vida focando em, digamos, pobreza e doença na África subsaariana é deprimente. Eu saúdo os heróicos altruístas eficazes que fazem exatamente isso. Seja como for, tenho a impressão de que a sobreposição entre altruísmo eficaz e transumanismo tende a aumentar cada vez mais.


Sentience-Research: Por que a assinatura molecular da felicidade e não do sofrimento?

David Pearce: Uma pequena região do núcleo basal promete revelar a assinatura molecular da felicidade pura - embora o vínculo fenomenal seja uma grande complicação. Graças ao trabalho de Kent Berridge e seus colegas na Universidade de Michigan, nosso centro de prazer final foi mais precisamente localizado do que a localização anatômica da dor pura: o "ponto quente hedônico" final do cérebro foi estreitado para um único centímetro cúbico no pálido ventral posterior. A ativação do receptor mu-opioide dessas células maravilhosas não é, por si só, a essência da felicidade. Mas será que este centímetro mágico contém a chave molecular para o futuro da vida no universo? É uma perspectiva tentadora. Mesmo assim, ingenuamente, um defensor da ética focada no sofrimento considerará a busca moralmente frívola. Por que se concentrar em decifrar a assinatura física do prazer puro - e eventualmente em hedonium (matéria e energia otimizadas para felicidade pura) - em vez de "dolorium", seu oposto?

Eu me preocupo com os riscos do sofrimento ("x-risks"). Potencialmente, uma compreensão física do eixo prazer-dor é um conhecimento perigoso - e não estou aludindo à ameaça hipotética à civilização de uma onda de choque de utilitronium. Os humanos têm noções primitivas de punição, vingança e metafísica da identidade pessoal. Não conhecemos limites para a depravação humana. Seres humanos arcaicos poderiam teoricamente infligir horrores muito piores do que qualquer coisa na história até hoje, caso o conhecimento da assinatura molecular do sofrimento puro fosse algum dia abusado. Então, além de ser uma oportunidade fabulosa para erradicar o sofrimento, esse conhecimento também pode representar um risco de informação. É um dilema. Os humanos são moralmente responsáveis ​​o suficiente para entender fisicamente o eixo do (des)valor empírico? Então, para erradicar o sofrimento para sempre, a humanidade deve encontrar uma maneira segura de enfrentar o desafio.


Sentience-Research: Precisamos de novas drogas psicodélicas?

David Pearce: Sim. Na medida em que esperamos entender as propriedades dos campos de matéria e energia, precisamos de novos psicodélicos, novos genes, novos neurônios, novas vias metabólicas e novos modos de ligação fenomenal. Sou cético quanto ao potencial terapêutico dos psicodélicos - em contraste com intervenções não psicodélicas que visam o humor, a ansiedade e a motivação. Com certeza, os psicodélicos às vezes podem induzir epifanias que mudam a vida. Conheço, nesse sentido, histórias de sucesso miraculosas. No entanto, os psicodélicos são horrivelmente imprevisíveis. O consentimento prévio para experimentação é impossível. Também, as mentes mais sombrias e doentes podem ter as piores viagens. Com engenhosidade, talvez a maioria das más viagens sejam evitáveis mesmo em humanos arcaicos. No paraíso pós-darwiniano, as más viagens serão impossíveis. Mas hoje, os euforizantes psicodélicos ou coquetéis têm "potencial de abuso" e, portanto, riscos próprios. Para funcionar em um mundo darwiniano, os humanos precisam se sentir "normais" - um equívoco para muitas mentes problemáticas. Somos primatas sociais com famílias e responsabilidades relacionadas ao trabalho. Portanto, por enquanto, visar uma versão idealizada da consciência de vigília comum (hipertimia) provavelmente é sábio.

No entanto, se sua pergunta é sobre a vida pós-darwiniana, então enfaticamente, sim, novos compostos combinados com novos genes e perfis de expressão gênica revolucionarão nossa concepção da realidade. Talvez bilhões de anos de exploração da consciência estejam à frente - começando com a criação de espaços de estados alterados de experiência tão diferentes como, por exemplo, sinestesia ou consciência de vigília do sonho, ou cognição da volição e emoção. Hoje, não temos nenhuma ideia do que estamos perdendo, nem nomes para nossas deficiências. Acredito que é impossível exagerar a importância intelectual desses espaços de estados de experiência extravagantes - embora haja um vasto ferro- velho de besteiras psicóticas também entre as joias. Por analogia, imagine se você fosse cego congênito, mas não soubesse que era sem visão, nem tivesse qualquer conceito de experiência visual. Agora multiplique essa ignorância bilhões de vezes. Eu acho que o problema humano é comparável ao de uma tribo de racionalistas cegos congênitos.


Sentience-Research: Qual você acha que foi sua ideia mais útil?

David Pearce: Nossa obrigação ética primordial é eliminar a experiência abaixo de zero hedônico em todo o mundo. A recalibração genética da esteira hedônica pode substituir a biologia do sofrimento por uma vida animada por gradientes informacionalmente sensíveis de bem-estar super-humano. A edição de genes não é mais ficção científica – assim, uma revolução da biofelicidade merece se tornar convencional.


Sentience-Research: Você acha que vale a pena viver?

David Pearce: Agora estou dividido entre dar uma resposta emocionante ou uma resposta honesta.

O prazer corrompe. Todos concordamos que o julgamento dos usuários de heroína não pode ser confiável. Usar heroína pode ser glorioso ("Vou morrer jovem, mas é como beijar Deus" - Lenny Bruce), mas o vício em opioides torna os usuários egoístas e imorais. O vício geralmente acaba causando sofrimento indescritível a todos. No entanto, a engenhosidade diabólica da seleção natural tornou a todos viciados - não em algum sentido metafórico forçado, mas literalmente dependentes fisicamente de opioides endógenos - e dispostos a racionalizar todo tipo de sofrimento para alimentar nosso vício. Insidiosamente, a vida darwiniana é subornada com prazer, não apenas coagida com dor. Pior ainda, a evolução projetou a maioria dos viciados em opioides de forma a propagar seu hábito para uma nova geração de viciados por meio do sexo orgásmico - não a melhor ferramenta para uma avaliação imparcial da ética reprodutiva. Claro, o vício não é como a maioria de nós conceitua nossa dependência em opioides endógenos. A maioria dos humanos desconhece a base neuroquímica da recompensa. O prazer simplesmente parece bom. Portanto, amantes da vida vão se recusar a aceitar essa rotulagem tendenciosa; seres humanos saudáveis não são "viciados". Os tópicos sombrios abordados nesta entrevista não vão ressoar em muitas pessoas. Afinal, os humanos em geral valorizam a grande arte, literatura, belos pores do sol, amigos, amantes, humor, espiritualidade, sexo, os últimos iPhones, bons tempos. A vida é um presente precioso que deve continuar! Mas objetivamente, neurologicamente, todos estamos presos em um ciclo vicioso de dependência de opioides e em negação sobre o dano que causamos às nossas vítimas - humanas e não humanas - e a nós mesmos. O vício distorce a moralidade para promover a adaptação de nossos genes. Certo, eu desfruto de experiências de pico enquanto você é um escravo dos "prazeres inferiores" de Mill, mas somos todos prisioneiros infelizes do eixo prazer-dor. A vida darwiniana é um malware autorreplicante, um motor monstruoso para perpetuar dor, sofrimento e vício. A escala do sofrimento é inimaginável. E é absolutamente sem sentido.

Contudo, há uma complicação nessa análise. Até mesmo o malware darwiniano mais angustiante pode ser valioso se impedir mais sofrimento do que causar. Então, quer você seja um altruísta eficaz ganhando para doar, um ativista vegano fazendo campanha contra o abuso animal industrializado ou mesmo, sim, um filósofo habilidoso escrevendo tratados sobre como reduzir o sofrimento, mesmo uma vida dolorida e depressiva ainda pode valer a pena. Aqueles que acreditam na ética focada no sofrimento devem agir de acordo. E fica um alerta, não ajude apenas aos outros; você tem uma obrigação moral de cuidar de si próprio. Dessa forma, você pode fazer mais bem para o resto do mundo. De maneira crítica, o malware darwiniano agora é inteligente o suficiente para reescrever seu código-fonte. O futuro pertence aos amantes da vida, não aos extincionistas, antinatalistas ou niilistas. Pessoas felizes encontram o significado da vida por si próprias. Empiricamente, mais felicidade equivale a mais significado. Superfelicidade, por sua vez, remete à experiências humanas com ainda mais significado. A vida pós-humana será incrivelmente valiosa por sua própria natureza.


Sentience-Research: Para finalizar esta entrevista, e tentando condensar sua filosofia: O que é importante?

David Pearce: A civilização será baseada em gradientes de felicidade inteligente. Então, vamos fechar as fábricas de morte, reprogramar o genoma e usar biotecnologia para erradicar o sofrimento.
Tudo o mais é supérfluo.


Sentience-Research: Muito obrigado, David.

David Pearce: Obrigado a você, Manu. Você é muito gentil. Continue com o ótimo trabalho!

[tradutora: Barbara Belli, Far Out Initiative]


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